sexta-feira, 29 de abril de 2011

A alma do negócio: O Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl


A diretora Leni Riefenstahl representa um desafio para a visão crítica de filmes: ela se constitui num evidente talento, é dotada de cultura cinematográfica, capacidade inventiva e inovadora em seu campo de linguagem... a serviço do Nazismo. Sobrevivendo longamente ao regime (nasceu em 1902 e morreu em 2003!), a cineasta sempre negou ter sido nazista, alegando que não se filiou ao partido e também que, se vivesse na URSS ou nos EEUU, faria filmes nesses outros regimes políticos, porque Cinema era sua profissão. Supunha, portanto, certa indiferença da produção artística em relação ao campo político da experiência humana.

Jamais saberemos com exatidão sobre convicções íntimas de Riefenstahl nem de ninguém. Seu trabalho concreto de direção no documentário O triunfo da vontade, que apresenta o Quarto Congresso do Partido Nazista (1934), contudo, é mais que coerente com a ideologia filmada, é um exemplo privilegiado dela, que Leni Riefenstahl assumiu enquanto convicção pública, em elegante estilo cinematográfico. Certamente, alguns tópicos do Nazismo não aparecem de forma evidente na obra, em particular, a questão de como tratar quem era julgado inferior aos arianos – judeus, eslavos, ciganos, homossexuais, deficientes físicos etc -, embora um dos muitos discursos de Hitler ali apresentados fale sobre a força da nação unificada (quer dizer: homogênea, racialmente pura). Mas a magnificência dos auto-designados superiores é reafirmada a cada momento, e num estilo impressionante de exibir poder com beleza visual. Ao invés de indiferença da Arte em relação à Política, Leni exemplifica a perfeita sintonia entre o primeiro fazer e a face hegemônica do segundo: a exibição reforça o que é exibido.

O título do filme foi sugerido pelo próprio Adolf Hitler, inspirado em livro de Friedrich Nietzsche (batizado por terceiros porque o filósofo já se encontrava doente quando escreveu os aforismos que o compõem) como Vontade de potência. Adolf mesmo escolhera a diretora para a tarefa de realizar o documentário sobre aquele encontro partidário e Leni dispôs de importantes recursos e apoios na realização de sua obra. Nunca essa escolha recairia sobre um diretor de posturas políticas contrárias ao Nazismo, ou mesmo independentes em relação a ele!

Pode parecer excessivo supor que Riefenstahl projetou o conjunto de atividades do evento em função da filmagem – ela nem tinha poder para tanto -, mas não é abuso pensar que a diretora participou muito intensamente de seu planejamento conjunto, estudou-o detidamente, garantindo a extrema precisão de tomadas de câmera (que, às vezes, assumiam o ponto de vista de Hitler, num avião ou automóvel, quando não se situavam em meio às tropas em desfile ou a outros grupos), para a posterior montagem do documentário. Nesse sentido, o congresso exemplifica a prática nazista de conceber a Política como obra de Arte (espetáculo) [ Esse tema aparece no clássico ensaio: BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, in: Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp 165/196.] e o documentário de Leni Riefenstahl garantiu o registro desse fazer, constituindo-se ele mesmo noutra criação artística. A minúcia do estudo que Riefenstahl e sua equipe fizeram das cerimônias se manifesta, por exemplo, na filmagem de um batalhão a partir de um ângulo superior à cena, permitindo ver o grupo humano e a sombra projetada de seus braços em saudação nazista, numa multiplicidade de planos e materialidades.

A precisão de tomadas é um importante traço estilístico de Riefenstahl como diretora, expresso através de movimentos de câmera geométricos e contínuos, enquadramentos monumentais e luminosidade teatralmente muito definida, que constituem uma espécie de anti-Expressionismo de Cinema, uma ostensiva resposta ao universo de tensões que marcara muitos filmes da República de Weimar (1918/1933), com seus cenários labirínticos e extremos contrastes de luz e sombra. E, no caso de O triunfo da vontade, a toda hora rola uma suástica. [Parafraseio um verso de Paulinho da Viola: “A toda hora rola uma História”, verso da canção com o mesmo título. Evidentemente, o sambista não tem nenhuma relação com o universo nazista! 3. BARTHES, Roland. Aula. Tradução e apresentação de Leyla Perrone Moysés. São Paulo: Cultrix, 1980].

Tal onipresença do símbolo é muito significativa: era preciso, do ponto de vista do Nazismo, lembrar reiteradamente quem é que mandava ali, como se fora dele não houvesse escapatória. E o estilo de Riefenstahl participa dessa tarefa, com muita eficiência, ao conceber imagens que desejam ser perfeitas, em seqüências de montagem sem tensão,  como se tudo decorresse de uma necessidade do real. Trata-se de um Cinema admirativo, que reitera o que mostra como um permanente ponto final e de exclamação! Essa construtora de imagens parece colocar o espectador na situação de eterno emissor de submissos “ohs!” de deslumbramento e adesão. Se as interjeições fossem dirigidas ao Socialismo soviético ou ao Capitalismo estadunidense, o limite seria o mesmo: uma Arte sem problematizações do mundo, uma Arte de apoio ao mundo tal qual se oferece; o exato contrário da Literatura como anti-ideologia, conforme concebida por Roland Barthes [BARTHES, Roland. Aula. Tradução e apresentação de Leyla Perrone Moysés. São Paulo: Cultrix, 1980.].

A narração de O triunfo da vontade enfatiza uma periodização histórica a partir da derrota na Primeira Guerra Mundial, marco de crise para a Alemanha, e da consolidação do Nazismo, definido como “Renascimento alemão”. Suas cenas iniciais apresentam belos planos de nuvens, índices de altura (vôo de avião) e grandeza do espaço e da visão, além de modernidade de temas e personagens. Logo, o espectador entende que aquele veículo transporta Hitler para as cerimônias do Dia do Partido, em Nuremberg (5 de setembro de 1934). Literalmente, o líder desce dos céus para seu povo [Marilena Chauí fez interessantes comentários sobre a campanha eleitoral de Fernando Collor de Mello, em 1989, incluindo cenas de chegada aérea a locais desse trajeto. Embora o filme de Riefenstahl não seja citado por Chauí, a semelhança de procedimentos narrativos entre aquelas cenas e o filme alemão é grande.  CHAUÍ, Marilena. Comentários em “Debate com o público”, in: CASTORIADIS, Cornelius. A criação histórica: o projeto da autonomia. Porto Alegre : Artes e Ofícios, 1992, pp 40/51 (trecho evocado: pp 47/51)].

O clima da chegada de Hitler é de eufórica alegria, com jovens e crianças aplaudindo e acenando, um público gigantesco em entusiástica recepção. O filme garante um ritmo narrativo dinâmico, com travelings feitos a partir de automóvel em movimento e uma montagem que procura garantir clima de agilidade. As cenas apelam para ícones sentimentais, como uma criança que entrega flores a Adolf ou um gato que se instala numa janela, dando um tom de intimidade familiar a tudo, até trazendo famílias inteiras que observam os acontecimentos de suas janelas.

Mas essa intimidade tem por permanente contraponto a dimensão gigantesca de espaços (ruas, estádios), grupos humanos e adereços (bandeiras, estandartes). O sentimento de grandeza se expressa, ainda, na presença de batalhões e mais batalhões, geometricamente dispostos, multidão que parece um formigueiro bem planejado.
Tal impressão visual de serem insetos submetidos à disciplina matemática se reforça na primeira apresentação do Acampamento da Juventude, com tendas repetidas. A maior proximidade em relação a esse grupo traz jovens (alguns quase crianças) sem camisa, expondo músculos, fazendo barbas,  penteando-se ou lavando-se uns aos outros (um dos rapazes esfrega sabão nas costas de outro), clima de camaradagem masculina que coloca esses virtuais soldados num universo ideal de confraternização, como se não fossem candidatos à morte para dali a pouco. Esse fragmento do filme enfatiza beleza e alegria dos moços, imagem contagiante do Nazismo dotado de tônus e futuro.

Outro agrupamento apresentado com grande beleza é o conjunto de camponeses  (diferentes regiões germânicas) de ambos os sexos e em roupas tradicionais, conduzindo ou usando alegorias com frutos, espetáculo de uma natureza prodigiosa e de uma diversidade submetida à autoridade do Führer.

Um terceiro grupo, somente masculino, que aparece no filme em submissão à autoridade hitlerista é a Frente de Trabalho, com batalhões que empunham pás ou picaretas. Adolf assume aspecto paternal em relação a esses homens, enfatizando o fim do conflito de classes na Alemanha da suástica, no mundo do trabalho militarizado.

A narrativa de O triunfo da vontade é intensamente concentrada na figura de Adolf Hitler. Num segundo plano, aparecem lideranças nazistas importantes, como Martin Bormann, Joseph Goebbels, Hermann Goering., Rudolf Hess. No último lugar, vem a multidão: desindividualizada, feliz, submissa. A submissão de todos à autoridade do primeiro se confunde com os interesses da Alemanha, como se o país e o líder máximo fossem uma só coisa. Exaltar a Alemanha se desdobra em convidar à paciência, ao trabalho incansável, à obediência.

A descida inicial de Hitler vindo do céu sugere uma identificação entre o líder e uma divindade, questão reforçada pelo clima operístico wagneriano de várias cerimônias do congresso, que o filme registra meticulosamente, incluindo seus efeitos de iluminação e coreografia. Juramentos prestados a Hitler, em uníssono, aproximam-se de rezas e estão articulados ao caráter automático de comportamentos como o “passo de ganso”, nos desfiles de tropas. Num filme expressionista como Metropolis, de Fritz Lang (1927), o risco da perda do humano é considerado uma ameaça terrível. Em O triunfo da vontade, a automatização das pessoas figura como grande conquista da sociedade disciplinada.
As multidões humanas se desdobram em oceanos de braços, dorsos e adereços, em especial, bandeiras, estandartes e similares, além de tochas.

No encerramento do Quarto Congresso do Partido Nazista, em meio à ênfase na grandiosidade do ambiente e da multidão reunida, há um absoluto cuidado do filme em relação ao discurso de Hitler. Visualmente, em mais de um momento, o enquadramento de filmagem situou Hitler num canto do quadro com uma imagem de águia noutro canto, espécie de rima visual entre grandezas simbólicas. O crescendo vocal do discurso é minuciosamente apresentado, evidenciando o absoluto domínio retórico do orador (ritmo, volume, dramaticidade). Hitler atua como uma espécie de regente de seu público, que aplaude disciplinadamente nas pausas de sua fala. Após o encerramento do discurso, a entrada em cena de Rudolf Hess, que culmina num convite ao retorno de Hitler, sugere momento meticulosamente coreografado. E as tomadas de cena a partir dos fundos do vasto salão colocam para o espectador do filme uma perspectiva de virtual presença naquele espaço e naquele momento.

Riefenstahl negou, até morrer, ter sido nazista, e apontava como provas disso a presença de múltiplas belezas raciais no filme Olympia (sobre as Olimpíadas em Berlim, de 1936, com a impagável cena da vitória do corredor negro estadunidense Jesse Owens na prova de 100 metros – ele ganhou outras três medalhas de ouro -, produzindo reação irada em Hitler), mais seu posterior projeto inacabado sobre os africanos Nuba (também conhecidos como Nuer), do Sudão, que resultou em longa série de bonitas fotografias, publicadas em livros nos anos 70.

Certamente, esses exemplos assumem de maneira integral belezas não-arianas – em Olympia, junto com atletas negros e brancos, aparecem amarelos, todos com corpos bonitos e ágeis. Pode ser também uma repetição da estratégia presente em O triunfo da vontade: os tópicos explicitamente racistas do Nazismo não figuram de forma evidente na obra. Isso não exime outros filmes de Leni Riefenstahl de serem nazistas, talvez demonstre que havia diversidade sobre doutrina racial no interior do Nazismo; ou ateste o triunfo dessa diversidade depois que aquele regime deixou de existir, no caso do projeto sobre os Nuba, apesar de um ritmo perturbadoramente lento para a efetivação desse novo momento em escala internacional: demorado fim do apartheid no sul dos EEUU (1963!), ainda mais tardia superação do mesmo problema na Rodésia (1980!) e na África do Sul (1991!). E as “limpezas étnicas” na ex-Iugoslávia (1995!) e noutras partes do mundo – inclusive as humilhações físicas que soldados americanos impuseram a prisioneiros de guerra no Oriente Próximo e na prisão de Guantánamo - demonstram, assustadoramente, que práticas exterministas da diferença étnica sobrevivem até hoje.

É incômodo, para quem não comunga do universo ideológico nazista (espero que a maioria dos espectadores atuais!), reconhecer o enorme talento de Riefenstahl. Sim, havia nazistas até brilhantes – no Cinema e noutras áreas de atuação! Que foram nazistas, destruindo os outros, autodestrutivamente. O talento de Leni não elimina esse traço de sua produção artística; diferentemente de um Serguei Eisenstein, que soube problematizar os descaminhos da Revolução Russa, no filme Outubro (e noutros grandes filmes), e enfrentou, depois, as maiores dificuldades para filmar na URSS; ou de um Orson Welles, que debateu brilhantemente o espaço público de Imprensa e Cinema norte-americanos na obra-prima Cidadão Kane (e outros temas, noutros filmes), e teve sua carreira de diretor, praticamente, impossibilitada nos EEUU. Eisenstein e Welles não fizeram propaganda (alma do negócio, negócio sem alma), e atingiram níveis artísticos os mais elevados.

Riefenstahl também enfrentou grandes dificuldades para fazer filmes depois que o Nazismo acabou. Era muito difícil convencer quem derrotou o regime de que ela não contribuíra intensamente para a imagem grandiosa que, um dia, o Nazismo projetou de si, como propaganda.

Parece o clássico samba de Noel Rosa “Cor de cinza”:

A luva é o documento
de pelica e bem cinzento
que lembra quem me esqueceu.

O triunfo da vontade é o documento, de celulóide e em branco e preto, que lembra o que Leni Riefenstahl queria ver esquecido, sem o conseguir.


FICHA TÉCNICA

O triunfo da vontade  (Alemanha). 1935. Direção: Leni Riefenstahl. Produção: Leni Riefehnstal. Montagem: Leni Riefenstahl. Argumento: Leni Riefenstahl e Walter Ruttmann.  Música: Herbert Windt. Efeitos especiais: Ernst Kunstmann. Câmera: Sepp Algeier, Karlç Attenberger, Werner Bohne, Walter Frentz, Hans Gottschalk, Werner Hundhausen,  Herbert Kebelmann, Albert Kling, Franz Koch, Herbert Kutschbah, Paul Lieberenz, Vlada Majic, Richard Nickel, Walter Himl, Arthur Schwertfeger, Károly Vass, Franz Weymahyr, Siegfried Weimann, Karl Wellert e Wiele Zielke. Aparições: Adolf Hitler, Martin Bormann, Joseph Goebbels, Hermann Goering, Rudolph Hess, Reinhardt Henrich, Henrich Himmler, Alfred Rosenberg e Julius Streicher. 114 minutos. Preto e branco.


LEITURAS COMPLEMENTARES

DIEHL, Paula. Propaganda e persuasão na Alemanha nazista. São Paulo: Annablume, 1996.
GIESEN, Rolf. Nazi propaganda films: a history and filmography. Jefferson: McFarland, 2003.
KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Outubro, de Einsentein: Os fatos do filme e o triunfo da poesia



O filme Outubro, de Serguei Eisenstein e Grigory Alexandrov, possui elementos que o identificam facilmente ao gênero “cinema histórico”: seu tema é a Revolução Russa, de 1917, grande acontecimento da História do século XX; e ele foi encomendado para comemorar os dez anos do evento, constituindo uma memória intencional sobre o tema.

Vale a pena explorar-lhe outros níveis de historicidade, principalmente a assustadora materialidade cinematográfica. Como noutros filmes de Eisenstein, o trabalho com a linguagem do cinema é meticuloso, ousado a ponto de alguns de seus resultados terem se transformado em referências canônicas para cineastas e fotógrafos posteriores. O pavão com aparência metalizada, na sala de trabalho de Alexandre Kerensky, parece ter ressurgido na coruja replicante que voa na sala de Tyrell, o empresário de Blade Runner (filme de Ridley Scott), que projetara os robôs humanóides, tornados humanos (até mais que os humanos) através da própria experiência. As foices e os fuzis, erguidos com orgulho por soldados e camponeses revolucionários, foram reapropriados por Sebastião Salgado, em suas tantas fotografias de camponeses.

Essas evidências nos lembram, de imediato, que estamos diante de um clássico, no mesmo sentido em que os movimentos de cabelos e o strip-tease da luva longa, por Rita Hayworth, transformaram o filme Gilda, de Charles Vidor, num clássico – todo comercial de shampoo e todo strip-tease são tributários de Gilda; ou o box de chuveiro, no grande Psicose, de Alfred Hitchocock. Mas também nos convidam a pensar sobre a capacidade que o cinema tem de criar seus fatos, ultrapassando em muito uma análise de discursos supostamente paralelos, e da fidelidade ou não na relação entre eles: no caso, o do filme Outubro e o do acontecimento anterior, “Revolução de 1917”, tematizado por seus diretores.

Tal paralelismo finda desprezando o filme como acontecimento. Do ponto de vista da História, o acontecimento fílmico remete ao universo da Arte e ao universo da Memória. O filme é um fazer de Memória Artística, a ser debatido preliminarmente, por historiadores, nesses níveis, mesmo que uma das legendas iniciais de Outubro reitere sua condição de “testemunha ocular e precisa do começo do nosso Estado Socialista”.

É preciso estar atento à opção por “Estado”, e não “Sociedade”, nessa declaração. Quem optou por Estado como lugar da Revolução foram Eisenstein e Alexandrov? Foi a hegemonia então vigente naquela Sociedade? A existência de diferentes versões de Outubro, em circulação internacional, sugere que Censura e órgãos semelhantes interferiram largamente nas finalizações do filme, independentemente da vontade de seus diretores. E que muito do que esses diretores quiseram mostrar escapou da censura.

Mais que testemunha ocular de qualquer coisa, Outubro é um artefato artístico de 1927, ativo agente de uma memória em construção e em disputa sobre a Revolução de 1917. E nessa construção e disputa, avulta a dimensão excepcional atribuída a Vladimir Lênin (morto em 1924), como personagem da narrativa e autor de referências em epígrafes e outros trechos textuais do filme.

Essa dimensão pode ser associada à relação de forças na política soviética daquele momento: Lênin morto, a batalha entre Josef Stálin e Leon Trótsky bastante adiantada – expulsão do último do PCURSS em novembro de 1927, seu exílio, em Alma-Ata, em 1928, e expulsão, da URSS, em 1929 -, a estrutura dos sovietes sob pleno controle de um Estado com partido único. Mas o filme não se reduz a ela.
Outubro se inicia com belíssima cena: uma mulher começa a amarrar, com cordas, gigantesca estátua do czar Alexandre III; um homem escala o mesmo monumento, usando uma escada, complementando aquele trabalho de amarrar junto com outros homens; um plano nos mostra o monumento preso por incontáveis cordas e a estátua começa a despencar, sob a ação da multidão.

É possível identificar uma crítica aos diferentes ídolos na História, nessa passagem e depois. Sim, a cena representa a derrubada do Czarismo, até de forma literal. Mas também faz parte de uma profunda crítica aos ídolos, reiterada ao longo do filme – Lênin estava virando um imenso ídolo, inclusive embalsamado (posteriormente, a canção “Rancho da goiabada”, de João Bosco e Aldir Blanc, falaria em “faraós embalsamados”), e o filme participava desse processo -, de maneira muito tensa, todavia. Se Eisenstein foi transformado, depois, em ídolo, seu cinema não visava a isso.

Outubro narra a revolução, traça periodizações desse processo, aponta acontecimentos e personagens – no último caso, um Lênin clarividente, um Trótsky vacilante e meio cabisbaixo, um Kerensky sempre ridículo... Mas revela olhos muito atentos para a presença da multidão nos acontecimentos, para sentimentos necessários à formação de um processo humano de vontade de revolução. E faz isso apresentando os machos e as fêmeas, os jovens e os velhos, figuras de diferentes regiões do Império russo.

As imagens que mostram pela primeira vez, nesse filme, os soldados na Grande Guerra enfatizam a pluralidade etária desses homens (uns enrugados, outros quase crianças), um profundo afeto entre eles, realçado por legendas como “Irmão” e “Amigo”, uma desconcertante alegria, em meio a sofrimento e cansaço. E essa confraternização se expressa em momentos dedicados a comer e beber, atos básicos de sobrevivência. Ou nos toques entre corpos e nas trocas de adereços – capacete militar por boina é um exemplo.

A contrapartida dessa Rússia de afetos é o universo do Governo Provisório, marcado por luxo, formalidade cortesã, funcionários que se curvam diante dos superiores, magníficos pisos e outros adereços arquitetônicos e decorativos ostensivamente luxuosos. E é essa Rússia do Governo Provisório, contraposta à pobreza e à fome dos homens e mulheres comuns, que aparece como responsável pela continuidade do que existia antes – guerra e carências. O Governo Provisório é um forte atestado de que a Contra-Revolução estava vencendo.

Eisenstein e Alexandrov desenvolvem um belo trabalho de montagem cinematográfica – não fosse o primeiro um dos inventores da linguagem do filme apoiada em tal procedimento -, apelando para composições de expressivos quadros visuais, formados por rostos ou diferentes objetos, como baionetas de fuzis que se espetam no chão e, depois, cálices de cristal, pratarias, relógios. Os dois diretores trabalham com imagens num ritmo musical, mesclado ao contraponto entre realidades, experiências e projetos de diferentes sujeitos: os pobres com vontade de futuro, versus os ricos, violentos e destrutivos, que espezinhavam, até literalmente, os outros.

É nesse contexto narrativo que o filme constrói uma de suas mais brilhantes imagens. A repressão do Governo Provisório a manifestações populares inclui isolar bairros de moradia desse último setor da população, suspendendo pontes movediças. Em meio a essa operação, surge a figura de um impressionante cavalo, morto, pendurado no espaço que se abre na ponte, até cair na água, bem como aparecem revolucionários agredidos, derrubados, sendo um deles (provavelmente, uma mulher) dotado de longos cabelos, que escorrem no vão da ponte, enquanto o corpo humano cai, numa rima visual com a crina daquele animal. No final dessa seqüência, aparece uma escultura com aspecto de egípcia antiga, evocando poder e autoridade. São, todavia, poder e autoridade do passado, e até mutilados. Trata-se de tema recorrente no filme – a crítica de imagens mais ou menos sagradas, expondo sua patética finitude de ídolos.

Uma função visual assumida por Outubro é exatamente essa radical crítica das imagens supostamente indiscutíveis (sagradas ou cívicas), donde a sucessão de medalhas, comendas, dragonas, esculturas de diferentes civilizações. E em meio a esses símbolos de diversos poderes, a gigantesca estátua de Alexandre III, cuja demolição marcara a abertura do filme, se recompõe, para em seguida ser sucedida pelas imagens de alguns daqueles outros ídolos sendo despedaçados, como se a História fosse uma sucessão de ídolos erguidos e derrubados, reerguidos e re-derrubados.

A revolução, nesse filme, é construída como obra coletiva, que se realiza quando as armas estão nas mãos do povo, contingente que inclui jovens e idosos, homens e mulheres. O trabalho de formar quadros visuais com diferentes objetos incluiu armas e impressos (possivelmente, panfletos, sem esquecer dos exemplares do jornal Pravda, atirados no rio pelos contra-revolucionários), salientando a amplitude grupal que qualquer revolução exige. E os militares de baixa patente assumem uma proporção de extremo significado no processo, expressa tanto visualmente, na presença de tantos soldados e marinheiros em cena, quanto no refrão reproduzido: “Proletariado, aprenda a usar seu rifle.”

O filme materializa, no plano visual, o caráter de revolução operária, camponesa e de soldados, apresentando a ação política e militar desses grupos. Em meio à narrativa épica da revolução, cabe registrar o apelo à retórica cômica, especialmente, na caracterização de Kerensky, ridiculamente contraposto à grandiosidade de Napoleão, situação que culmina na apresentação paralela daquele personagem e de um pavão com aspecto metalizado, que parece um objeto inanimado para, em seguida, assumir aspecto de um ser vivo. Noutro momento de delírio atribuído a Kerensky, o narrador do filme pergunta (em legenda) se aquele Alexandre seria o novo czar, Alexandre IV. Quando Kerensky brinca com luxuosa peça de cristal, coroando-a, o desdobramento dessa imagem é uma tropa de soldados de brinquedo.

Os quadros de objetos, reiteradamente montados como recurso narrativo do filme, encontram um correspondente com aparência de não ser montado, no momento em que os revolucionários invadem o Palácio de Inverno: a profusão luxuosa de quinquilharias nos aposentos da Imperatriz e o excesso de garrafas na adega. Não está em jogo a pré-existência daqueles quadros: eles são fatos do filme, fatos constitutivos de uma memória reflexiva sobre seu tema; e exigem, do espectador, o ato interpretativo para que o trabalho de montagem não se confunda com um jogo formal. Evocando o recurso psicanalítico da livre associação, a narrativa convida quem a acompanha a tecer articulações entre tantos objetos e imagens, em busca de seus nexos para a compreensão daquela realidade.

O filme de Eisenstein e Alexandrov se encerra como nova epígrafe de Lênin, reiterando a criação do Estado socialista proletário. A narração principal que Outubro tece é sobre o mundo anterior a essa criação, quando o que estava em jogo não era somente o Estado, e sim a Sociedade tomando seu destino nas próprias mãos.

O filme é fiel aos fatos? Sim, no que se refere a seus próprios fatos.

Feito por encomenda, Outubro faz pensar sobre revoluções em potência – além daquela que o Estado procurava monopolizar -, que a linguagem artística teimava em evocar. Na medida em que a revolução se desmontava (desde o início dos anos 20! Proibição de facções no partido, depois da oposição de esquerda, visão depreciativa das artes experimentais, transformação do mundo socialista em gestão do Estado), tal homologia cinematográfica enfrentou mais e mais barreiras para sobreviver - a extrema violência stalinista, a política estética do “Realismo socialista” -, donde as crescentes dificuldades que Eisenstein sofreu, até o final da vida, para fazer novos filmes.

É doloroso pensar nos belos filmes que esse e outros cineastas não fizeram por mera insegurança do Estado. Mas ao menos cabe o consolo de que não estamos diante da Ideologia do regime.
Outubro não é Stalinismo, nem Realismo socialista, e sim um Triunfo da Poesia. A memória principal que dele resulta é a da capacidade interpretativa da Arte sobre o mundo do Socialismo que se tentava construir, e que se destruía em nome dele mesmo.

FICHA TÉCNICA

Outubro – Dez dias que abalaram o mundo (URSS). 1927. Direção: S. Eisenstein e G. Alexandrov. Produção: Sovkino. Roteiro: S. Eisenstein e G. Alexandrov, a partir do livro 10 dias que abalaram o mundo, de John Reed. Fotografia: E. Tisse e G. Popov. Cenografia: V. Kovriguine. Música: Edmund Meisel. Assistentes de direção: M. Strauch, M. Gomorov e I. Trauberg. Elenco: Nikandrov (Lênin), Vladimir Popov (Kerenski), B. Livanov (Terechtchenko), E. Tisse, soldados, camponeses e outros sujeitos populares. 74 minutos. Preto e branco.

LEITURA QUE RECOMENDO

EISENSTEIN, Serguei. Reflexões de um cineasta. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.
MACHADO, Arlindo. Serguei M. Eisenstein. São Paulo: Brasiliense, 1982   (Encanto Radical - 8).

REED, John. 10 dias que abalaram o mundo. São Paulo: Global, 1978.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Reiterar a Dor: Batismo de Sangue

O filme Batismo de sangue, de Helvécio Ratton, se dedica a um grande campo temático: a ação dos dominicanos contra a ditadura brasileira no final dos anos 60 do século XX, a extrema violência governamental no país durante esse período, os grandes sofrimentos impostos aos que ousaram se opor a ela. Tal universo é tratado através de recursos narrativos que procuram reproduzir os acontecimentos com a máxima verossimilhança, o que inclui torturantes cenas de tortura. Essas posturas se desdobram numa tendência a renunciar à Arte (o que importa, anti-aristotelicamente, é a fidelidade ao real, ao que aconteceu), numa Estética da identificação por parte do espectador que transforma a narração numa espécie de jornada reiterativa, confirmatória.

Muitos ótimos filmes retomaram grandes temas, reelaborando-os cinematograficamente. Um exemplo é O sétimo selo, de Ingmar Bergman (1956), que aborda a Europa medieval e a arte popular como força crítica – e isso antes da divulgação internacional do livro clássico de Mikhail Bakhtin Cultura popular na Idade Média e no Renascimento . Outros ótimos filmes exploraram assuntos aparentemente banais ou de difícil acesso, tornando-os temas da maior grandeza, como Meu tio, de Jacques Tati (1958 – há cenas memoráveis que apresentam um anônimo varrendo a rua ou o Sr. Hulot subindo e descendo escadas), e Ano passado em Marienbad, de Alain Resnais ( 1961 – nesse caso, um desafio para o espectador é descobrir qual o tema que está sendo tratado, será que há um tema tratado, será que as personagens tiveram um passado e poderão ter um futuro?).

Essa diversidade nos faz pensar que um ótimo tema, como ponto de partida, não garante a excelência do filme. Entre o assunto escolhido e a obra exibida, é preciso investir talento, inventar um tema de cinema, reinventar o tema no filme. Grandes filmes inspirados em grandes textos literários ousaram reinventar a magnitude prévia: Blow-up, de Michelangelo Antonioni (1966 – inspirado em Julio Cortázar), e Morte em Veneza, de Luchino Visconti (1971 – baseado em Thomas Mann).

Seria injustiça afirmar que não há talento em Batismo de sangue. Bons atores assumiram a maior parte dos papéis e foram bem orientados. O diretor demonstrou inteligência no trabalho com enquadramentos, na construção de cenas e na montagem – há opções por ritmos, uso de cores e até cenas de total escuridão que existem como atos de cinema, interpretações do estado de espírito de personagens e daquele contexto social. Talvez, prepondere certo convencionalismo narrativo mas isso é uma opção de estilo, não defeito.

Ratton dialoga com diferentes gêneros cinematográficos, desde a óbvia identificação com o cinema político até aos filmes policiais e aos filmes de terror – homens de serra elétrica e por aí -, sem esquecer dos filmes de lágrimas (melodramas). Trata-se de legítimas opções de trabalho, que evidenciam estarmos diante de um profissional bem preparado para o fazer cinematográfico. E nenhum desses gêneros é inferior a outros: o grande diretor Luchino Visconti pensou no melodrama para fazer Rocco e seus irmãos (1960) e disso resultou uma brilhante obra-prima; o mesmo pode ser dito em relação a Stanley Kubrick, ao filme de violência juvenil e à excelência de Laranja mecânica (1971).

Batismo de sangue, todavia, padece de extrema submissão a seu ponto de partida temático e textual, reduzindo-se quase sempre à função de ilustrar com imagens e sons (freqüentemente expressivos) o que já sabíamos antes através do livro homônimo de Frei Betto . Daí, ele se desenrolar de maneira quase reverencial em relação aos dominicanos, suas ações e seus sofrimentos nas mãos da ditadura brasileira. Daí, a absoluta coerência de Ratton começar e terminar o filme com a mesma situação – Tito preparando o suicídio e executando o ato: chegamos ao ponto de onde partimos.

É claro que a maioria das pessoas já começa a ver esse filme com uma análise definida: tal violência é asquerosa e faz-se necessário rejeitá-la com rigor, ela até já foi rejeitada pela maior parte dos espectadores antes mesmo de se assistir ao filme. Tal conclusão prévia se complementa com um suspiro de alívio: Graças a Deus que aquela ditadura acabou!

Dar Graças a Deus (com um risco conformista em relação ao presente: nosso mundo é bom por não ser aquele), a partir desse filme, não é figura de retórica: Deus se faz presente nessa narrativa sempre. Por um lado, por necessidade efetiva: falando de religiosos católicos, Ele é referência incontornável. Por outro, por opção desse narrar: o martírio de Tito se define como hagiografia, os dominicanos argumentam que agiam politicamente em nome do sagrado, acima de critérios políticos mais corriqueiros – não pegaram em armas, apoiaram perseguidos dentro de princípios cristãos, a tirania ditatorial é quase uma espécie de anti-Ética que exige ser combatida enquanto tal, Thomas de Aquino legitima tal combate.
Não há motivos para desmentir aqueles dominicanos, que, afinal, sofreram muito mesmo nas mãos da ditadura. Mas, como não somos aqueles dominicanos, há bons motivos para procurarmos explicar seus argumentos, para tratá-los como argumentos e não como Verdade revelada, não como outra Palavra de Deus ou ao menos de Seus mensageiros.

Agindo como porta-vozes de Deus, os personagens se colocam não apenas acima dos torturadores e seus líderes mas também acima de outros grupos de combate à ditadura, talvez até acima dos espectadores, a quem cabe crer. Não é ocasional que surja a frase imperativa: “A esperança desses presos coloca-se na Igreja, única instituição brasileira fora do controle estatal-militar.” Sim, a frase foi originalmente dita pelo Frei Tito, que a registrou por escrito . Outra coisa é o filme redizê-la sem qualquer problematização: será que a Igreja era mesmo a única instituição brasileira fora do controle estatal-militar? Será que o controle estatal-militar era tão onipotente assim?

A saga dos jovens dominicanos é contada, nesse filme, a partir de suas posturas críticas diante da ditadura brasileira daquela época. Somos apresentados a eles num momento de tensão construtiva: ida ao encontro de Carlos Marighella (os jovens com olhos vendados), estabelecimento de suas tarefas naquela relação (retaguarda), um Marighella comunicativo e pensador (estabelece diretrizes, entrega livros de sua autoria aos rapazes).

Em seguida, somos levados à igreja dos dominicanos, pichada com as palavras “Padres comunistas”. Os dominicanos inspiram respeito em sua frágil coragem mas nada sabemos sobre os fiéis que acompanham aquelas missas tão críticas em relação à ditadura. Em sentido paralelo e ampliado, outros sujeitos que combatiam a ditadura aparecem para o espectador como massa informe – estudantes, presos. A aula que valoriza o prazer no sexo atesta boa informação do filme sobre a época mas não se desdobra em maior compreensão sobre seus personagens centrais: o voto de castidade era renúncia ao prazer, havia outros prazeres (a libido investida no combate à injustiça, por exemplo), havia tensões em relação àquele voto? A bonita cena em que uma jovem nipônica convida Frei Beto para namorarem é abruptamente encerrada pelo rapaz com a resposta “Eu sou dominicano”; sua frase é rebatida com uma sensual informação da moça – “Eu sou japonesa”. Quer dizer: e daí?

Nenhum calafrio percorreu o corpo do homem? Se não percorreu, o que houve para que seu corpo se esfriasse tanto em relação a um convite tão bonito? Ler e dialogar com as falas de Leonardo Boff (ex-frei que abandonou o volto de castidade) sobre seu encontro sexual com a mulher talvez ajudasse a humanizar mais aquele momento .

Helvécio Ratton escolheu dar maior ênfase em seu filme a Frei Tito, com destaque secundário para Carlos Marighella e Frei Beto. Tito e Marighella são irmanados por ideais de Justiça, sensibilidade artística (o primeiro canta, desafinadamente, “Lunik IX”, de Gilberto Gil, e “Noite dos mascarados”, de Chico Buarque; o outro elogia Noel Rosa) e martírio – terríveis torturas sofridas por Tito, assassinato de Marighella, Tito suicidado -, irmanados na Missão que lhes custaria a vida. Beto, jornalista na época dos acontecimentos narrados e autor do livro no qual o filme se baseia, aparece principalmente como intelectual e homem de extrema dedicação a seus princípios, junto com Frei Osvaldo e outros companheiros eruditos e sensatos.

Um aspecto da narração que se destaca intensamente é a exibição de torturas medonhas sofridas pelos dominicanos.


Ratton optou por uma filmagem naturalista: partes do corpo violentadas por queimaduras, choques elétricos e pancadas, rostos desfigurados pela dor e pela humilhação, gritos apavorantes. O diretor considerou necessária essa exibição explícita, assumindo um teor quase didático em relação aos piores horrores – não para ensinar a torturar, é claro, mas para o espectador odiar a tortura e seus agentes.
É compreensível e até louvável a vontade de denunciar essas experiências medonhas. Assistindo a elas, o espectador experimenta facilmente a sensação de que está diante dos piores horrores imagináveis, mesmo vivendo num país onde, no primeiro semestre de 2011, o salário mínimo é de R$ 545 – valor insuficiente para se pagar o aluguel de uma kitchnete, tortura elegante e sutil, amplamente legitimada pelos melhores partidos políticos.

A tradição cinematográfica no século XX de denunciar horrores tem um ponto alto nos documentários que os exércitos aliados fizeram quando invadiram a Alemanha nazista e entraram nos campos de concentração: montes de cadáveres (removidos até por tratores), seres vivos que mais pareciam cadáveres ambulantes, horror, horror. Nos próprios documentários estadunidenses sobre essa tragédia, depois de reiterar a veracidade de tudo que está sendo mostrado, há falas sobre estarmos diante da pior crueldade jamais perpetrada ou por perpetrar.

A declaração de horror diante do horror é necessária. O perigo é, considerando-o insuperável em relação ao passado, ao presente e ao futuro, liberarmos geral: pode-se fazer qualquer coisa porque o pior de tudo já foi feito. No caso dos EEUU, o horror nazista era contemporâneo da Ku-Klux Klan, que existe até hoje – embora menos poderosa, reconheça-se. Depois, houve Vietnam, Iraque, napalm, bombarbeios em estilo telegame…

No caso brasileiro, a legítima indignação diante daqueles fatos de tortura pode contribuir para amainar as críticas ao cotidiano contemporâneo da população. Sim, não é a mesma coisa. Mas a catarse a partir da tragédia nos ajuda a conviver pacificamente com sofrimentos menos visíveis.

Junto com isso, a extrema visibilidade das torturas oculta um lado elegante da ditadura: gente como Delfim Netto e Mário Henrique Simonsen não deve ter torturado ninguém jamais; o primeiro é homem culto e inteligente; o outro (já falecido) até cantava árias de óperas, junto com suas tarefas de economista. Mas ambos foram tão responsáveis pelo regime quanto os torturadores e garantiram, para si mesmos, uma memória pública muito mais amena – Delfim Netto escreve regularmente em grandes órgãos da Imprensa e tornou-se quase um interlocutor do governo Lula.

Não se trata, evidentemente, de qualquer preocupação individual “negativa” em relação a essas ou outras personagens. O problema é pensar em imagens perto do estereótipo que certas memórias podem reforçar porque nem tudo, na ditadura, era luta armada, tortura, martírio. Junto com personagens ditatoriais elegantes, como aqueles, some também a sociedade onde os sofrimentos ocorreram. Como é mesmo que vivia o povo de que se falava e em nome de quem se agia? Quem é mesmo Nildes, irmã de Tito, além de ser irmã de Tito?

A tortura, tão detalhadamente exposta, finda sendo compartilhada pelo espectador sob dois ângulos. Por um lado, identificamo-nos com os torturados, sofremos com eles até na própria pele – muitos espectadores, para sofrerem menos, desviam o olhar da tela e não vêem aquilo. Por outro lado, corremos o risco de encarar a tortura como espetáculo, fotogenia da dor a um passo do voyeurismo.


O bom documentário Cidadão Boilesen, de Chaim Litevsky (2009), apresenta denúncias de ex-torturados: alguns torturadores e seus apoiadores, como o personagem-título do filme, sentiam prazer erótico vendo pessoas sob tortura. Certamente, Helvécio Ratton jamais pensou em obter um efeito dessa natureza junto a seu público mas o perigo de se transformar qualquer horror em pornografia é grande – Jean-Luc Godard já o apontou em relação aos filmes e às falas de Steven Spielberg sobre o Holocausto nazista. É desejável que os remanescentes da tortura não estejam usando ce nas realistas de cinema bem intencionado politicamente para fins dessa natureza mas…

Essa exposição da tortura se mescla com uma certa obviedade dicotômica na caracterização dos torturadores, como é o caso da maldade e da vulgaridade de Sérgio Paranhos Fleury, policial que liderou repressão, prisão e tortura de dominicanos e outros opositores da ditadura. Em meio a um violento interrogatório, vê-se uma fotografia de Emílio Garrastazu Médici, ditador naquele momento. São informações corretas mas quase redundantes. E o efeito crítico de se mostrar a cara de Médici ou a truculência pessoal de Fleury finda sendo mais fortes nas pessoas que viveram o auge daquelas personagens – hoje menos lembradas.

Essa obviedade contamina, com sinal invertido, cenas que envolvem a ação dos próprios presos políticos, como aquela em que cantam o Hino da Independência, com destaque para o trecho: “Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil”. Considerando-se que se tratava da independência de um país escravista (o Brasil do século XIX), a noção de liberdade, no hino original, era, no mínimo, muito restrita para não dizer extremamente patética. O entusiasmo não-analítico dos presos que cantavam é justificável. Sua repetição triunfal, quase quarenta anos depois, numa narração cinematográfica é preocupante ou apenas ideologia no sentido clássico marxista – racionalização, inclusive pelas vias subjetivas, do poder.
A preocupação realista do filme inclui uma fala de Fleury sobre seu sonho para o futuro – um barco em Ilha Bela. Sabemos que ele morreria depois num barco em Ilha Bela e possivelmente assassinado. No filme, a frase antevê o justo castigo daquele carrasco – mais catarse para o espectador.

O diretor de Batismo de sangue, em nome do real, quase abre mão de ambições artísticas, embora a Arte vença em muitos momentos do filme. Vale a pena recordar a atitude de Eduardo Coutinho como diretor do documentário Cabra marcado para morrer (1984): embora o filme registre falas de cidadãos reais, o diretor fez questão de realçar sentimentos subjetivos daqueles homens e mulheres e dele mesmo, sem medo de mostrar o que não se viu antes. São atitudes igualmente legítimas, é claro. Resta avaliar quais os resultados cinematográficos mais sólidos que um e outro caminho atingiram.

O filme Batismo de sangue tem sido muito utilizado para fins didáticos, em escolas, congressos e outros eventos públicos, atingindo jovens que não viveram aquela época histórica. Isso é muito bom: ele aborda tema significativo, possui méritos, é dotado de seriedade. Resta salientar a necessidade de aliar aquele uso a uma leitura reflexiva, tanto para evocar a rica tradição da memória cinematográfica brasileira sobre a ditadura civil-militar de 1964/1985 quanto para garantir uma relação crítica entre passado e presente.


Abordar cinematograficamente o Brasil na passagem dos anos 60 para a década seguinte não nos isenta de refletir sobre o Brasil de 2006 (quando o filme foi feito) nem o Brasil de qualquer data em que o filme for apresentado e analisado.


Aquele não foi o único batismo.


FICHA TÉCNICA
Batismo de Sangue (Brasil/França, 2006). Direção: Helvécio Ratton. Roteiro: HelvécioRatton e Dani Patarra. Pesquisa: Stela Grisotti. Inspirado no livro homônimo de Frei Betto (Carlos Alberto Libânio Christo), de 1981. Fotografia: Lauro Escorel. Direção de arte: Adrian Cooper. Figurino: Marjorie Gueller e Joana Porto. Música: Marco Antonio Guimarães. Elenco: Caio Blat (frei Tito), Daniel Oliveira (frei Betto), Léo Quintão (frei Fernando), Odilon Esteves (frei Ivo), Victor Ramil (frei Diogo), Cassio Gabus Mendes (Delegado Fleury) e outros. Cores. 103 minutos.


LEITURAS QUE RECOMENDO

AGUIAR, Marco Alexandre de – “Imprensa, cinema e memória”. Projeto História (História e Imprensa). São Paulo: PUC/SP, 35: 179/199, dez 2007.
BETTO, Frei (Carlos Alberto Libânio Christo). Batismo de sangue: a luta clandestina contra a ditadura militar – Dossiês Carlos Marighella e Frei Tito. 11ª edição. São Paulo, Casa Amarela, 2000.
FEIJÓ, Sara Carolina Duarte. Memória da resistência à ditadura – Uma análise do filme Batismo de sangue. Dissertação de Mestrado em História Social, defendida na FFLCH/USP. São Paulo: digitado, 2010.